quinta-feira, dezembro 11, 2008

Aparição em Santa Apolónia?

Manuel Pateta vem para mim com os seus passinhos de arame. Soergue o boné, os olhos chorosos escorrem aguardente(...)dou-lhe a mala, ele põe-se a andar adiante, dobrado em compasso, como se lhe doesse o ventre, as calças de ganga pelo meio da canela, os pés sem meias em alpercatas brancas".

Virgílio Ferreira, Aparição

Já quase não se vêem carregadores nas estações de comboio. Alguns subsistem, porém, na estação lisboeta de Santa Apolónia. Acorrem aos comboios que param junto às plataformas, oferecendo os seus préstimos a quem chega dos Alfas e dos Intercidades carregado de malas e malões. Não sei exactamente quem lhes paga e que tipo de gorjeta lhes dão, porque nunca usufruí dos seus carrinhos ferrugentos.

São quase todos homens de idade. Um deles, o mais velho, com o seu boné identificativo de fazenda, tem um andar esquisito e um olhar choroso, ferido, alcoólico. Lembra-me exactamente Manuel Pateta, o apoucado carregador de malas da estação de Évora que aconselha Alberto Soares/Virgílio Ferreira à sua chegada. Com aquela idade, aquele olhar, "a escorrer aguardente", aquele andar estranho, pergunto-me se afinal Manuel Pateta não seria uma personagem real, que Virgílio (que leccionou em Évora) incluiu na sua obra maior, e que por acasos da vida tivesse vindo parar a Lisboa, à centenária e movimentada estação ribeirinha de Santa Apolónia, com o seu trabalho de sempre. É bem possível, é. Para a próxima peço para me levar a mala e dou-lhe uma gorjeta. Talvez lhe faça aquelas perguntas de quem chega pela primeira vez áquele destino, como a de há quantos anos exerce o mester, e mesmo como se chama. Quem sabe se a minha mala não será mesmo carregada pela pitoresca figura imortalizada em Aparição.

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