segunda-feira, maio 12, 2014

A questão dos Papas ou uma canonização demasiado rápida


Bem sei que já lá vão uns dias, mas este é um assunto em que ainda gostava de pegar, mais a mais agora, vésperas de Fátima.
A canonização dos Papas, em fins de Abril, em Roma, teve um enorme banho de multidão, grande cobertura mediática e muita emoção pelo meio, como seria de esperar. Centenas de milhares de pessoas foram pessoalmente testemunhar a santificação de João Paulo II e de João XXIII, de tal forma que amigos meus que também lá foram não conseguiram ver absolutamente nada, nem sequer a efígie dos dois novos santos, quanto mais os dois Papas vivos que lá estavam.


O interesse do acontecimento, aliás, estava sobretudo aí, numa ocasião que o mundo guardará para a posteridade: dois Papas em público, lado a lado, o Papa efectivo, Francisco, e o Papa Emérito, Bento XVI. A suprema autoridade da Igreja Católica dividida em dois? Não, a responsabilidade cabe ao Papa Francisco. Bento XVI representa um pouco a face humana do papado, dada a sua renúncia, para permitir que um novo pontífice tomasse em mãos as duras e necessárias tarefas que ele já não podia desempenhar. Tornando-se Papa emérito, era obrigatório que estivesse na cerimónia. Mais ainda quando conheceu os dois Beatos que aí iam ser canonizados: João XXIII e João Paulo II.


Apesar disso, apesar de toda a emoção que rodeou a canonização, houve um aspecto a que não pude deixar de reparar, até porque era notório: a maioria das pessoas dava claramente mais importância a João Paulo II do que a João XXIII. Cheguei a ouvir pessoas a referir-se à "canonização do Papa", e notei a sua admiração posterior quando souberam que afinal não se tratava apenas de Karol Wojtyla. De certa forma compreende-se: João Paulo II surpreendeu logo à partida por não ser italiano e vir de Leste, assistiu à derrocada do comunismo (para a qual contribuiu largamente), teve um dos pontificados mais longos da história, viajou por todo o mundo e era constantemente destaque na imprensa e na televisão, e marcou imensamente uma época e uma geração, a minha. é natural que uma figura tão influente e tão fresca ainda na memória seja objecto de tamanha devoção e respeito.

Mas é também injusto para com o Papa João XXIII, que marcou da mesma forma a geração anterior, e mais ainda, iniciou um autêntico terramoto na Igreja, talvez a sua maior transformação desde a Contra-Reforma. Teve uma popularidade comparável à de João Paulo II, sem viajar e sem os mesmos meios mediáticos, para além de que o seu pontificado durou apenas cinco anos.

Para além de tudo, a canonização no mesmo dia parece igualmente despropositada: afinal de contas João XXIII desapareceu há cinquenta anos, e João Paulo II há apenas nove. Seria de esperar que o Papa italiano fosse canonizado antes do Papa polaco. Não conheço o processo de santificação, mesmo sabendo que tem vários passos, mas pelo que segui, parece-me que ao apressaram de propósito, cortando ou despachando várias etapas, sobretudo logo que surgiu o necessário milagre. Isso aconteceu, aliás, no processo de beatificação. Tudo pela pressão popular, que se ouviu logo quando João Paulo II morreu, em Abril de 2005, com o clamor de "Santo Subito". Bem sei que nem sempre é fácil resistir aos pedidos do povo cristão, e que houve outras canonizações muito mais rápidas (a de Santo António, por exemplo). Mas a Igreja Católica, sempre tão ponderada, tão cuidadosa, tão lenta a mudar (o que tem a vantagem de distinguir modas efémeras de mudanças reais e de saber quais os caminhos a que conduzem, e em última análise, de distinguir o certo do errado), deixou-se levar demasiado pela pressão de fora. Um santo não é uma estrela pop, mas alguém que pelo seu modo de vida alcançou um estado incomum, e a quem se pede para interceder a Deus. João Paulo II foi sem dúvida um Papa marcante e carismático, com uma incrível relevância política, mas nove anos é pouco tempo para se fazer a necessário avaliação do seu Pontificado, que teve as suas controvérsias (e a ténue reacção aos casos de pedofilia não é certamente a menor). Seria melhor esperar mais tempo, até porque se sabe que uma figura tão carismática terá sempre outra capacidade de influência nestes casos. Deixar passar uns anos, e fazer um processo paulatino, para que depois se pudesse avaliar com cuidado se mereceria ser ou não santo, sem que o clamor popular, sempre tão lesto a exigir a elevação nos altares com a pedir que rolem cabeças ou que se faça justiça popular. João XXIII não era menos importante e precisou de cinquenta anos. Não teria sido melhor fazer o mesmo com João Paulo II?

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