sexta-feira, abril 03, 2015

Manoel Cândido Pinto de Oliveira 1908 - 2015



Sempre que morre uma pessoa de idade muito avançada, daquelas que parecem imemoriais e eternas, fico sempre com uma certa sensação de intranquilidade. Bem sei que a eternidade não é terrena, mas a longevidade transmite uma ideia de harmonia, de serenidade, decerto relacionada com as raízes e as memórias a que nos agarramos e que impedem que o Mundo tropece no caos, ou no mínimo na incerteza pessimista.

O dia da morte de Manoel de Oliveira é o exemplo perfeito dessa inquietude (remetendo a um dos seus filmes, um dos muitos baseados na obra da sua amiga Agustina). Sabíamos que chegaria, mas sempre achando que seria um dia longínquo. Aliás, Oliveira parecia não fazer caso e tinha algumas tiradas surpreendentes nesse sentido. Mas nos últimos tempos fraquejava, e o seu coração estava já muito fraco. Acabou normalmente, naturalmente, provavelmente sem concluir todos os trabalhos que previra. Ainda assim, conseguiu concretizar a grande maioria, mesmo que tivesse sempre novas ideias que queria levar à tela.

aqui referi o meu primeiro contacto com o cinema de Oliveira - e com o próprio: numa sessão especial de comemoração de Aniki Bobó, com a presença do realizador e de alguns dos acores, na Casa das Artes, onde também se exibiu Douro, Faina Fluvial, o seu primeiro filme (que voltei a ver há uns dois anos, com acompanhamento musical dos Mareantes do Rio Douro, numa sessão organizada pelo CNC do Porto). Mas nunca falei sequer com o realizador. Conheci netos seus, apresentaram-me à sua mulher, a Senhora Dona Isabel Carvalhais (a quem ele deve também boa parte da obra, quanto mais não seja assistência técnica), precisamente na igreja de Cristo Rei, que nunca como hoje terá tido tanto mediatismo. O meu avô conheceu-o e já nos anos sessenta apreciava muito a sua obra, então pouco reconhecida e até mesmo severamente limitada por questões políticas e financeiras. Mas a ele nunca o conheci.

Não sei se o respeito a Manoel de Oliveira se de apenas e só à sua obra ou se também à sua idade, com que continuava a filmar contra todas as probabilidades. Em todo o caso, este não era um pormenor de somenos. Relembre-se que para além de cineasta, era também um atleta de eleição, que ganhou provas de automobilismo e se sagrou campeã nacional de salto à vara (aliás é nesta condição que A Bola, na edição de hoje, anunciou a sua morte). Olhamos para A Canção de Lisboa, decanos dos filmes sonoros portugueses, com mais de oitenta anos, e lá está ele, auxiliando Vasco Santana. Com oitenta e tal anos, surge em Lisbon Story, de Wim Wenders, a parodiar Charlot, saltando e dançando. a idade e a energia inesgotável do cineasta atleta era uma coisa absolutamente espantosa (Clint Eastwood disse há tempos que pretendia seguir-lhe o exemplo).

Fica a sua obra, imensa, discutível, com altos e baixos, mas que revelava a sua visão de Portugal, as suas dúvidas, as suas obsessões e a sua estética muito particular e nem sempre compreendida. Fica a complicação com a sua casa que deveria guardar o seu espólio, jamais aproveitada, entretanto trocada por outra, complicação essa que não pode ser assacada a Oliveira. Fica seu exemplo de mente sã em corpo são, a sua afabilidade, até o mito dos seus planos longuíssimos.


E fica uma ironia e uma curiosidade. A ironia é que Manoel de Oliveira tenha tido exéquias fúnebres (mas não missa) numa Sexta-Feira Santa, o dia da Paixão de Cristo, o mesmo que lhe permitiu fazer um dos seus primeiros filmes, O Acto da Primavera. E a curiosidade é que a primeira (e última) imagem do seu primeiro filme, Douro, Faina Fluvial, de 1931, aquele facho do farol, tenha sido filmada a poucas centenas de metros do último, O Velho do Restelo (nos bancos dos Pinhais da Foz), com mais de oitenta anos de intervalo. Uma espécie de eterno retorno dentro da sua obra?


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